Douglas
Zílio Coutinho é um contista, poeta e romancista nascido no ano de
1992 em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro.
É
fundador do Sarau Marginália e editor do blog O canto do Pássaro
Azul.
Publicou
a coletânea de contos Notas
Periféricas
(Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2016), sua primeira publicação
em livro.
O
segundo corte
“Cada
um engendra o seu próprio inimigo.”
De
l’inconvenient d’être né, Emil Cioran.
O
murro o atinge pela direita, bruto, potente e certeiro como um trem
encontrando o corpo de alguém profundamente desgraçado, estático
sobre os trilhos antigos que rasgam dois bairros empobrecidos de uma
cidade sem nome. Não
chore, não chore agora!,
ele pensa repetidas vezes, enquanto força os pequeninos e trêmulos
beiços, a fim de vedar a boca evitando que qualquer grunhido
escapasse num gesto de sofrimento incontido. Com as pálpebras
fechadas forçosamente, não consegue reparar quando a mão pequena,
entretanto calejada, ergue-se mais uma vez à procura de força,
impulso; ainda assim, pressente a sua aproximação, num breve
instante antes de ter o seu pequeno crânio secamente ferido. Engula
esse choro, sabe como ele se irrita mais quando você chora, sabe
disso!.
Dos olhos tão marejados, nenhuma lágrima caiu, escorrendo pelas
bochechas para pingar no contorno do queixo; assim como nenhum berro
fugiu pela sua boca, num querer desesperado por cessar as pancadas
suportadas. Imóvel como uma estátua de gesso – um querubim, quiçá
–, o pequeno permaneceu sentado.
“Largue
o garoto, miserável! Quer matá-lo?” consegue ouvir, antes de ter
o cabelo amassado do lado direito da cabeça, o mesmo lado em que o
primeiro golpe fora desferido. É
minha mãe!,
ele reconhece antes de ser arrancado desta terra sem deus para ser
cuspido numa penumbra incompreensível em que a sanidade perambula
pelos ares sem encontrar repouso. “Não! Não faça isso, eu
imploro!”. A atribulada cabeça é lançada uma, duas, três,
quatro, cinco, seis, sete, oito, nove vezes contra o azulejo branco
com agradáveis detalhes floridos de cor azulada e violeta. O espanto
o alcança antes da dor, que, não tão lenta, o rasga por inteiro.
Incapaz
de resistir, ele desmaia.
Gritos.
Desesperados gritos. Voltando a si, o menino reconhece a voz: é a
mesma de antes, é sua mãe, aquela que padece, contra uma parede
branca, pelas mãos daquele que a desposou e a subjugou através de
um casamento diante dos homens e diante de um deus emudecido. Deixará
que morra o ventre que te gerou?
Deixará
que padeça aquela que, pela sua salvação, arriscou a própria
existência?
É o que se pergunta incontáveis vezes, talvez, confiando que a
repetição seja capaz de cingir de força as pernas finas e bambas,
e encher de coragem o peito – que era pouco mais que um roto tecido
cobrindo um amontoado de ossos.
Se
os berros animalescos daquele homem – que, podendo esporrá-lo no
ralo, desejou plantá-lo no vão das coxas de uma mulher – não
tivessem silenciado os gritos maternais, talvez a sua ousadia não
fosse abalada. Ele
a matou? A minha mãe morreu?! Morta para me salvar? Põe-se
de pé com celeridade, derrubando a cadeira que, chocando-se contra o
chão, faz um grande estardalhaço. Alcançando o puxador de uma
gaveta, busca uma faca de cortar carne (não
será carne o que cortarei?)
e, mesmo com os joelhos vacilantes, penetra no estreito corredor sem
iluminação.
O
homem, que também era besta-fera, abriu a mão que apertava o
pescoço da mulher de boca aberta e olhos esbugalhados, e encarou o
pequenino. A diminuta mão sua, mas, ao invés de afrouxar a palma e
os dedos, o cabo é apertado com mais força, desespero. “Largue a
faca, moleque!” seu pai esbraveja, “comeu merda, por acaso?”.
Comi?
As coisas estão confusas, o crânio ainda dói, as mãos molhadas
tremem, os joelhos fraquejam. Ele não cede espaço, apesar de tudo;
antes, olhando aquela que o amou e o embalou com a coberta em noites
gélidas, cantarolou belíssimas canções em madrugadas tempestivas,
saltou rumo ao corpo roliço e atarracado daquele que, se
engalfinhando vorazmente, terminou por guinchar de dor.
Descobre
que não há espaço para a culpa. Somente um ódio frio, incapaz de
incendiá-lo, agindo, entretanto, como um forte vento empurrando uma
inútil folha ao relento. Encara-o forçar a mão contra o abdômen
rasgado donde o sangue escorre. O
mesmo sangue que o meu! “O
que fez? Esfaqueou o seu próprio pai? Que diabo é você?” o
gigante vencido vocifera, enquanto se arrasta para o quarto através
de passos vagarosos e pesados. “O que fez?! Está louco?!” outro
grito o questiona, o grito feminino de sua mãe que, alisando o
próprio pescoço avermelhado por causa do sufocamento, lança rumo
aos olhos de sua cria um olhar envenenado de desprezo, repugnância.
Estático, o pequeno não entende quando ela se levanta e corre para
a figura ensanguentada sobre a cama, vertendo mil beijos na boca que
amaldiçoava os céus e a terra. Por
que ela o escolheu? Que fiz para que, dentre os dois, fosse eu o
rejeitado?,
perguntou-se por anos, tomando cuidado para que os seus pensamentos,
desde então confusos, não fossem ouvidos e renegados por qualquer
outra criatura.
Quando
o corpo flagelado de sua mãe se ergueu do chão e passou pelos
umbrais da porta do quarto do casal, debulhando-se sobre o leito, o
fio que a ligava ao filho fora rompido brutalmente. No exato milésimo
e de uma única vez como num corte. O corte que, antes do fio que
unia o seu coração ao dela, fincava o seu umbigo à caverna que o
vomitara numa noite de inverno; o cordão que fora rompido, ao ser
expulso do casulo que o protegia de qualquer sofrimento, decepção,
desespero. Decepado o segundo e último laço, a pequena criança se
sente só, profundamente só, e então chora.
A
faca ensanguentada cai tilintando ao tocar o piso e um profundo
silêncio invade todos os cômodos.
Não
há mais o que dizer, apenas lamentar.
Lindo! Me pergunto se esse conto teria um fundo real de experiência própria.
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