sexta-feira, 29 de julho de 2016

Marcos Bassini


Marcos Bassini é um redator, roteirista, compositor, e poeta nascido no Rio de Janeiro em 1968. É apresentador do slam de poesias Haicai Combat e autor do livro de poemas Senhorita K (editora Patuá). A publicação deste livro pela Editora Patuá foi um prêmio que o autor recebeu do concurso Edith - Só Para Poetas, organizado pela Editora Edith, com direito a lançamento na Balada Literária 2013, criação de Marcelino Freire.
Senhorita K É um livro de poemas que se apropria de algumas características dos romances (como história e personagens) e filmes. A letra K é a primeira de um projeto chamado Glossário.
Abaixo um poema inédito do autor.



Gramatura do dia
 
você alega que não existe gota de sal, mas ela escorre
assim como o grama de ar e o pó de sintaxe

você diz que não sabe viver sem nêsperas
             mas não sabe o que são nêsperas
e não quer que eu duvide quando fala
pão, pedra, dor?
 
você não diz que as coisas são assim, mas me olha como se fossem
como se uma lâmina de vento entrasse pela nesga do sândalo
 
você não quer que eu anuncie ter capturado um vestígio do nada:
       só porque não acredita em nada exige que ninguém acredite
por mais que eu vire as pálpebras ao contrário
pra mostrar pro silêncio dos meus pais onde ardia teu cisco

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Prisca Agustoni


Prisca Agustoni é uma poeta e narradora nascida em Suíça, em 1975, que ama particularmente ler literatura russa, alemã, cubana, mexicana, portuguesa e argentina.
Escreve sua obra literária ora em italiano, ora em francês, ora em português.
Vive no Brasil faz muitos anos, mas se pensa como cidadã do mundo.
Suas últimas publicações de poesia foram Uncielprovisoire (Genebra, Ed. Samizdat, 2015) e Hora Zero (São Paulo, Editora Patuá, 2016).
Os poemas abaixo apresentados pertencem à coletânea inédita em português Diário de Bordo, escrita em homenagem ao trabalho fotográfico de Marcel Gautherot.




Suíte para a construção de Brasília
d’après Marcel Gautherot (1958)

A cidade surge da morte
dos ossos
do cerrado

sutil, alça ao céu seus membros
fíbulahomero ulna

quase estivesse rezando
com compostura
para os ausentes



#


Longe bemlonge

parece uma nuvem
talvez um navio
que boia no ar

: visão de um futuro
enterrado na poeira



#


Estamos em pleno apocalipse

as torres como corpos na névoa
encarnam em silêncio
a antiga tragédia

nossos dedos
quetrabalhar no cimento
são o pêndulo invisível,
os instrumentos do acaso
ou de algum deus distraído

mas há sombras que se alongam,
tentáculos terrosos
queimados

para lembrarmos ainda quem nós somos



#


a sinuosidade toda redonda
da Cúpula do Congresso Nacional
é um seio semidesnudo
pudico o suficiente
para revelar sem hesitação
sua verde beleza artificial

terça-feira, 12 de julho de 2016

Pedro Rocha

Pedro Rocha é um poeta nascido no Rio de Janeiro em 1976 e vem de uma trajetória de mais de duas décadas de fazer poético.
É idealizador do FalaPalavra, grupo performático dos anos 2000 que juntou os poetas Guilherme Zarvos, Ericson Pires, Michel Melamed, Viviane Mosé, Chacal, Eber Inácio, e Guilherme Levi.
Participa de diversos eventos literários e tem textos publicados em revistas como O Carioca, Et. Cétera, Cepensamento, Cep 20 Mil Calendário, entre outras.
Publicou os livros Escrita de Galo (Coleção Séc. XXI, 2002), Onze (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2002), Chão Inquieto (Rio de Janeiro: Editora 7Letras , 2010), Experiência do Calor (Rio de Janeiro: Dantes Editorial - selo Lábia Gentil, 2014) e Ogivas de Urgência (Rio de Janeiro: Editora 7Letras – selo Megamíni, 2015).
Integra o coletivo Trëma.




Cepensamento

sem mais                                

o Rio é uma bosta

sem nada a cidade
abandonada na bandalha
cocaína exportada dentro da carne
daquele restaurante caro da Lagoa
e o outro de Ipanema
essa ignorância com medo
da farofa do    Bem-Te-Vi
ou da furunfa que matou ele

essa ignorância certeira
de que o terror é o terceiro
            ou o vermelho
            ou a rosa
            o césar ou a corja

o corvo voa oculto
na glorinha da geral

mesmo no esmagado
ralha gralha na malha da era marte
na cona da guerrilha
a vida é magra

a vida é magra
como uma garça
uma mergulhada no asfalto
esburacado às margens do
                 Rio da Prata

não aquele Rio da Prata
braço navegável
ou perna de fêmea ainda
de tango e de candombe
pela poesia que se
enxuga nele

não aquele Rio da Prata
limite político acidente
acerto da natureza
talho alagado resolvendo
o fim do Uruguai e
início da Argentina

não aquele imenso dorso
fluvial atravessado por Gardel
e que em suas praias hoje
se lançam homens desempregados
vasculhando a esperança
e a areia com detectores de metal
e que é também Rio bosta
dentro da miséria global

mas outro Rio da Prata
mais bosta ainda
mas uma garça mergulhada
no asfalto esburacado desse outro Rio da Prata
uma garça achada na cabeça
por pedrada

que fez seu vôo tonto
 tocaiado
    caído

estabacar-se à margem desse Rio da Prata
um Rio morto da febre do Viegas
da ferida aberta do Jardim Violeta
do zunido rente na favela do Sossego
ponto final do 393
em Bangu zona oeste do

Rio de Janeiro

essa cidade que a cada dia se quer menos
como uma pedrada covarde
em vôo de ave

e que caída
atrás do meu carro

(no momento em que parava
pra  comprar água
à margem do Rio da Prata)

ela trôpega
troncha
morria não fosse meu socorro

Só segurei
em minhas mãos

suja fedida branca antes
quando nasceu provável
mas que agora cinza
de tanto comer esgoto
de tanto comer lama lixo e mijo

                        só segurei


os meninos me olhavam
malignando se eu pousava ela

a pássara frágil
    golfava ar

e ia me entendendo
em nosso movimento bicho
recuperava sua via de asa

as penas da cabeça
esgarçadas de sangue de garça
cobrava sua força

            porque “tudo que vive
                           não desiste de viver”

e desvoou à outra margem

o povo de lá me olhava
sem vacina no ciúme
ninguém nunca fez centelha por eles

o que é uma garça?

um tolo treco sujo
um tijolo quebrado na calha
uma galinha sem carne
e que vai pelo ar
e caga

é nada

bom pra pedrada
mais vale o tiro
mordendo o alvo

mas algo mudou em seu nome
olhos dos meninos desvelaram
e um cachorro coxo ficou sem chute
e um cavalo bagre
bebeu água perto dum sujeito

que a vida encontra um jeito
e estoura Deus

então Poeta

quando for construir um pensamento

quando te derem 6 ou oito páginas
num periódico comemorativo
documento de um evento importantíssimo
fundamental pioneiro
talvez último refúgio de primícias humanas
mas que não é ninguém
é a garça driblando pedra
dentro dessas cidades de bosta

saiba porquê escrever algo
tenta tua miúça pessoal de lado
toca teu corpo coletivo
lembra de quando você andava de ônibus
pensa na Garça de Bangu do Rio da Prata
tenta o drible que ela não deu
ali no ponto final do 393 e do nove dezoito

esquece o tijolo bala
tenta um tijolo inteiro
em cima de outro
em cima de outro
                         e outro outro

cuida da minha casa
que ela não é só sua

e mais escritor
o seu estilingue instituição flui
frui egoísta

chega de saudade
chega de soldado

produz pensamento avante

voa Pato


#


Espasmo diante do espanto


o clarão que essa pessoa produz
a bomba que porta essa voz
o vazio
que invade por essa porta que se
          abre
o furo que faz esse rugido
o vento que vem desse peito
       e  que me arranca roupa

o chão que me despenca dos pés
a vertigem nesse barulho
                                   
                                    esse grito
                                    esse golpe
                                            coice
                                               soco
                                       
                                         esse oco
se expandindo dentro de alguma coisa
que também sou eu

esse Deus desvelado
posto de repente 
na sala

esse raio que o céu me acerta
essa reta no meu meio
ronco rasgando a terra

força que fulmina
esse jorro que irrompe no tempo 
sacudindo a realidade

essa possibilidade que mostra
um poder descabido à humanidade
através de um simples corpo
porto e plataforma de revolução

existe dentro dessa pessoa

que ferramenta é essa
que fermenta o invisível?

que nome tem essa usina
que transforma ar em fuzil?


que caminho o espaço percorre
nesse prisma de gente
                     que muta
                           muda
                           tudo o que está presente?

o latente nessa garganta é luta

                          
                                          ou não, ainda      


palavra nenhuma
        se aplica ou explica
                                 esse evento

só sopro
         bruto
           som
                            violento       
                        combustão
                   descabimento

quando range
essa árvore
que age
da cripta à copa

diante
de dentro
e de trás
de Amora

o que há
nessa hora
é a evidência
de que qualquer indivíduo
é capaz de transformar
o singular em coletivo


#


Poema para um Poema
(para Danilo Monteiro)

Certos trabalhos exigem desembaraço.

E um poema
certeiro assim como esse
deixa uma mancha
na imaginação.

Essa mancha
é uma janela
encharcada de imagens grávidas,
é uma plataforma de lançamento lúdico,
palco de circunstâncias exageradamente felizes.

Quando o mar
já era mar
a terra não passava de uma rocha      nua

ela não pôde paralisar-se com o encantamento disso

e o poeta desfez um enigma
construindo um mirante
diante de um nó,
e o mais importante
é que a resolução de um problema nele,
nos leve tão adiante.


#


CEP 90

Quando eu tinha dezesseis
e vendia salada de fruta no posto 9
dentro de uma metade de abacaxi,

o Guilherme Zarvos
me fez um desafio:

-                         - tá vendo esse laranja
               esse vermelho, rosa, amarelo,
         verde que rega a areia
         que entorpece o mar
         que vai pra todo lugar
         que tinge a sua barriga?

                   Você tem que saber porque isso acontece.

E o Serginho que comia essa areia
e o Fabiano e o Paulista
e o Guiga e o Leo e a Carol Parrot
e a Carol Moura e o Michel e a Tracy
e a Leca o Tamur o Alexandre Monstro
o Momo o Mike o Montanha o Dado o Cabelo
o Beto e mesmo o Ericson que não estava,

estavam todos
conduzindo
aquelas cores

com seus rostos de medalha 
e seus braços estirados
dentro da luz salgada

e ainda assim não era suficiente
a metáfora.

Guilherme dançava
e era como se criasse
ali uma tecnologia
que assimilasse
essa intensidade.

-                        - Eu te dei uma folha inédita
        Agora fudeu, não era pra isso,

        Vamos pro baixo gávea!

sábado, 9 de julho de 2016

Carla Diacov

Carla Diacov é uma poeta brasileira nascida em 1975 em São Bernardo do Campo, São Paulo. Com formação em teatro (de 1995 até 2005), pôs-se a escrever e des­de então é só o que faz.
Vez ou outra se atraca com alguma pintura ou desenho.
Tem poemas publicados na revista Coyote (editada pela Kan com distribuição pela Iluminuras/Brasil) e em vários sites na internet.
Afora seus tantos blogues, como o NICHOS, tumblrs e plataformas digitais em geral, é uma devotada integrante do site Escritoras Suicidas e tem um bom apanhado de participações nas revistas Germina Literatura, Mallarmargens, Usina e na Revista Ellenismos, onde, através do selo “Ellenismos Livros”, tem publicado o e-book Fazer a loca.
Também publicou no Jornal RelevO, nas revistas Modo De Usar &Co., Diversos Afins, Cruviana (em sua terceira edição), Zunái, Limbo, Musa Rara e no site Cronópios.
Recentemente agregou poemas inéditos à Vida Secreta #2 e às publicações portuguesas Enfermaria 6, Flanzine (#8 e #11 - impressa) e à brasileira O Garibaldi (online e impressa).
Integra as coletâneas 70 Poemas para Adorno (fruto do Festival Literário da Madei­ra, 2015),  Antologia Poética 29 de Abril - O Verso da Violência (São Paulo: Editora Patuá, 2015) e a ESCRIPTONITA: mitologia-remix & super-heróis de gibi (São Paulo: Editora Patuá, 2016).



Pela editora portuguesa Douda Correria, lançou Amanhã alguém morre no samba, sua estreia universal em livro solo (2015). Em 2016, pela mesma editora, lança Ninguém vai poder dizer que eu não disse, e pela Edições Macondo, A metáfora mais gentil do mundo gentil.








x
a sobrevivente toca fazer chá
da erva qualquer
qualquer erva é doce santa ácida daninha
a sobrevivente sabe o chá
pela goela até os pés
passando pela benfeitoria
qualquer benfeitoria é
toca pela mazela 
um encanto qualquer
desentope a biografia com o rabo do gato morto
então vejamos também os benefícios do escalda-pés

a sobrevivente toca fazer chá
como toca desafiar o ponto de fervura da água benta
qualquer água é



#



:
é um milagre o pescoço estar onde está
ascendido num ponto da brancura do atlas
jogado na cabeceira da carcaça
flutuando na praça com a boca cheia
de pipoca e argumentos herbicidas
repartido atrás do poste
no colo da senhora Y
angustiado e problemático
queria tanto ser catalogador de gravetos em L
delator de goteiras retas
contador de monstruosas infâncias
pescoço puro ou só
daí que é um milagre estar onde está
ascendido na escuridão
entre o livro e o torso da vítima número 139
na rua F
pescoço da cidade pescoço
do estado



#



x
o sobrevivente ou a morte
a morte
desde antes da
escrita sobrevida
então em qual direção escrever?
para antes do gênero e das bússolas
para ninguém
e também para morrer sem tempo
em tempo
e não morria nunca
morreria
sangrava
mas nunca
nascer era da dádiva mal cabida
para quem a leitura
para que o encontro
mas não morria dialogava e não morria nunca
mas nunca morreria
mas eu estava falando de amor e me aconteceram dessas coisas
com as mãos fechadas
me aconteceram com violência
me vi bruta perdida
para antes do gênero e das bússolas
eu que estava falando de amor
não sobreviveria nunca



#



:
as xícaras postas
e há outras bocas outras línguas outros dentes cariados
outros buracos dificultados
dentistas mais chistosos
dentaduras de pérolas
jaquetas de couro de bolsa de madama
pontes levadiças com engrenagens rockabilly
na bestialidade rebelada do chá
o antigo gosto pela sacanagem infantil
arrancar a casca da ferida
por debaixo da assombração
outras culturas de chá
a composição perfeita da porcelana
digo
os ossos que fazem a cama
sob os lençóis de ontem
xícaras bonecas volição
um torrão meu três nossos
meu pente cariado de nylon
tudo de açúcar gordo
o rosto da boneca cariada de beijos
o jogo de chá parece o jogo
os ossos que fazem o jardim
impossível curar uma boneca zarolha dos brancos

alice nunca teve pescoço
morreu comendo um bule de marzipã

colherada de silêncio:

esse charuto não é inédito
passthefuckingashtraytea set, doll



#



x
temos uns sobreviventes
uns afetados de sol
uns afetados de vida ainda
uns afetados de mais
uns afetados e uns contorcionistas
enfim temos sobreviventes
sujeitos ao suor que é digno da sobrevivência
temos dignos também
uns afetados de casacos da pele de orlando
a janela imortal
a cancela imoral
uns afetados de manteiga de cacau
uns afetados de céu e de agulhas
entre uma orelha e outra agulhas magnéticas
guelras amanteigadas e agulhas
uns afetados de glândulas
glândulas inflacionadas em credos
mas temos sobreviventes
uns afetados de formol
temos uns sobreviventes ainda que não
mas temos o afeto e temos o formol
homem
temos o afeto e temos o formol

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Poema inédito de Bernardo Vilhena

Bernardo Vilhena é um poeta e letrista nascido no Rio de Janeiro, em 1949.
Foi fundador e editor das revistas Malasartes, O Carioca (com Chacal e Waly Salomão) e Almanaque Biotômico Vitalidade, com a Nuvem Cigana, coletivo poético e artístico do qual fez parte na década de 1970, junto com outros integrantes como Chacal, Ronaldo Bastos, Guilherme Mandaro, Charles, Ronaldo Santos, entre outros.
Participou da histórica antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda e publicada em 1976.
Fundou a gravadora Regata na década de 1990, pela qual lançou vários artistas, entre eles a cantora Paula Lima, o primeiro disco solo de Seu Jorge e da banda paulista de samba rock “Clube do Balanço”.
Em 2015 publicou, pela Editora Azougue, a antologia Uma vida bandida e outras vidas, obra na qual foram reunidos todos os seus livros de poesias lançados anteriormente, além de alguns poemas inéditos .
Como letrista, escreveu canções para nomes como Lulu Santos, Ritchie, Cazuza e Lobão. Duas dessas são “Menina veneno”, uma das músicas mais tocadas nos meios de comunicação no ano de 1983, e “Vida louca vida”, sucesso na voz de Cazuza.
Abaixo, um poema inédito de sua autoria.






Espaçopoema


Eu percorro o espaço proposto pelo poema
espaço físico
Texturas variadas se sobrepõem à leitura
paredes, muros, chão, céu, tudo
nuvens, mares, rios, líquidos diversos envasilhados
escorridos, derramados, libertos de conformidades
É de todo incerto que a época evocada dê o tom que ilustra o poema
funciona mais à guisa de cenário inconstante
ao se modificar em demonstrações de maleabilidade ouse transformar-se em espaço onírico
o poema estabelece sua cor, cria desníveis, altera e alterna as horas
e se declara atemporal

    condições climáticas desafiam a previsibilidade
    afastam as noções mais simplórias de claro e escuro

o poema captura o olhar interno do leitor
penetra em regiões abissais
busca a propriedade daquele momento
vivo, liberto, anárquico
o poema e sua trajetória
o poema e sua memória
todas as memórias
o poema e sua história
pleno de liberdade

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Um conto de Rodrigo Santos

Rodrigo Santos nasceu em São Gonçalo, Rio de Janeiro, em 1976. É escritor, professor, corredor de rua e zagueiro do Pindorama F.L., a Seleção Brasileira de Escritores.
É um dos criadores e apresentadores do projeto "Uma Noite na Taverna", um sarau mensal que acontece há treze anos em São Gonçalo, voltado à popularização da poesia.
Vencedor do prêmio FLUPP Pensa 2012, Rodrigo é autor dos livros de poesia Máscaras sobre Rostos Descarnados e Brechó de Almas, e do romance Mágoa, além de figurar em mais de uma dezena de coletâneas.
Atualmente administra as páginas O Bardo - Rodrigo Santos e Uma Noite Na Taverna.

Com ele damos início às postagens de contos em nossa revista.







Volta

- Deixa eu subir, Aldo.
A voz de Dália soava enfraquecida através do interfone. Eu havia ignorado todas as suas mensagens no celular, porém ela de alguma forma encontrara o caminho de casa.
- Aldo... Por favor...
Dois anos. Um bilhete na porta da geladeira, preso com o ímã do disk-gás. Dois cachorros, um peixe-beta (que morreu de fome), um cacto (de sede) e eu, deslocado no apartamento cheio de ecos retóricos.
- Sobe. – e apertei o botão de plástico com um telefonezinho em relevo para abrir o portão, agradecendo por não ter porteiro àquela hora.
Estava mijando com a porta do banheiro aberta quando a luz do corredor do prédio entrou na frente dela, e se foi. Ela não.
Não me dei nem ao trabalho de lavar as mãos, e fui para a cozinha fazer um café. Se era para ouvir groselha, que fosse ao menos com uma caneca de café.
Ouvi o barulho do zippo e a gaveta do rack se fechando. Dália estava sentada no sofá, no escuro, com uma grande bolsa de viagem no chão, sobre meu tapete branco.
- Cadê os cachorros, Aldo?
- Soltei na praça. Um foi atropelado, o outro um mendigo levou.
Seu silêncio denunciava a culpa. Se alguma coisa acontecesse com aqueles malditos cães à época em que ela vivia aqui, teria dado merda. Uma vez esqueci de comprar o biscoito scooby genérico e foi um badauê do cacete. Agora, nada se ouvia. Dois anos.
A sala estava escura, e eu acendi o cigarro na guimba que ela largara no cinzeiro. Coloquei uma caneca de café em uma de suas mãos, enquanto ela parecia não saber o que fazer com a outra.
- Aldo...
- Bebe o teu café, você está precisando.
- Ah, não fala assim... – quando ela pegou em meu braço, senti algo molhado e pegajoso. Olhei para a caneca e o algo molhado era vermelho. Sangue. Dália tinha sangue em suas mãos.
- Dália...
A caneca de café pousara na mesa de centro, e a outra mão estava em meu rosto, espalhando sangue e carinho.
- Quanta saudade, Aldo...
- Dália, que merda você fez agora?
- Shh... – Seu dedo pousado em meus lábios trouxe o gosto da ferrugem. – Não fala nada. Preciso de um lugar para dormir. E de um banho.
Dália se levantou e pude ver, em seu caminho para o banheiro, que sua saia hippie também estava manchada. A caneca tinha suas digitais. O barulho do chuveiro. Minha espera pelo desespero que não vinha. Dália. Dois anos, sequer um tchau, agora me aparece e mancha minha porcelana com o sangue de alguém.
Cheguei ao banheiro e ela estava agachada no fundo do box, as mãos pendidas ao lado do corpo. Seu corpo não mudara tanto nesses anos, seus cabelos estavam mais curtos, o fio de água rosada descia para o ralo.
- Pode usar essa toalha que tá aí.
Ela levantou apenas a cabeça e olhou pra toalha, e depois pra mim.
- Eu lembro quando a gente comprou essa toalha. Foi em Campos do Jordão...
- Naquela noite você vomitou o quarto todo...
- Eu estava grávida.
- Você é louca.
- Você me fez tirar.
- Eu apenas sugeri. Eu não queria filho.
- Comigo...
- Com ninguém. Nunca tive essa intenção.
- Você não gostava nem dos meus cachorros. Você deixou o peixe-beta morrer. Até o cacto!
- Não sou um cuidador, sou um gastador.
- Aproveitador.
- Chame do que quiser, não tem mais importância.
- E eu engravidei outra vez depois daquilo...
- Saia do chão desse box.
- Você não quis ouvir... Não quer ouvir agora...
- Vou pegar outra toalha.

Dália passou pela sala enxugando os cabelos, o corpo brilhando à luz da rua. Quando cheguei no quarto, ela estava deitada (na minha cama) em posição fetal, nua, os olhos estacionados na parede.
Aproximei-me lentamente, sem barulho, mesmo sabendo que ela podia me ver. Agachei-me ao lado da cama, e nem assim ela me olhou.
- Dália...
Nenhuma resposta. Dália soluçava pra dentro, e fungava com aquele barulho molhado de catarro preso.
- Dália, eu preciso saber o que você fez.
- Deixa só eu dormir aqui, Aldo. Prometo que vou embora quando o dia amanhecer.
- Ir embora é sua especialidade.
Silêncio.
- Por que você foi embora, Dália? Eu acharia que você tivesse sido abduzida se não fosse aquele bilhete na porta da geladeira.
- Eu estava grávida de novo, Aldo.
“Eu estava grávida de novo, e sabia que você não iria querer ouvir falar sobre o assunto. Então eu fui embora. Você sabe que eu sempre quis ser mãe, eu tirei três filhos seus por causa da sua estupidez. Eu te amava, Aldo. Eu te amo ainda. Eu perdi três filhos porque não queria te perder. Mas foi mais forte dessa vez, e eu tive que sumir.”
- Você estava... você...
- Mas eu te amo, Aldo. Você é meu fardo, meu simbionte. Mas pode deixar, amanhã de manhã eu vou embora.
- Se você estava grávida quando saiu daqui...
- Eu fiz besteira, Aldo. O que eu fiz não tem perdão, nem eu posso me perdoar.
- O que você fez, Dália? – meu coração começou a bater mais forte, pressentindo o desastre. Alguma merda grande havia acontecido, e a ideia começava a pairar como a sombra de uma nuvem de chuva. Eu tentei não pensar nisso.
- Eu não podia viver sem você, eu não podia olhar para você...
- Onde está a criança, Dália?
- ... era mais importante, mas não pude ficar longe...
- ONDE ESTÁ A PORRA DA CRIANÇA, DÁLIA?! – lembrei-me da bolsa e levantei correndo para a sala, esbarrando o ombro no portal do quarto. Ainda ouvi o fio de voz de Dália a dizer “... eu tinha que mostrá-lo a você, mas sabia que você não queria ser pai...”
Cheguei na sala, e a mancha sob a bolsa de viagem crescia no tapete branco. A mancha molhada, escura e pegajosa.



Meu filho.