quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Um conto de Douglas Zílio Coutinho


Douglas Zílio Coutinho é um contista, poeta e romancista nascido no ano de 1992 em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro.
É fundador do Sarau Marginália e editor do blog O canto do Pássaro Azul.
Publicou a coletânea de contos Notas Periféricas (Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2016), sua primeira publicação em livro.




O segundo corte
Cada um engendra o seu próprio inimigo.”
De l’inconvenient d’être né, Emil Cioran.

O murro o atinge pela direita, bruto, potente e certeiro como um trem encontrando o corpo de alguém profundamente desgraçado, estático sobre os trilhos antigos que rasgam dois bairros empobrecidos de uma cidade sem nome. Não chore, não chore agora!, ele pensa repetidas vezes, enquanto força os pequeninos e trêmulos beiços, a fim de vedar a boca evitando que qualquer grunhido escapasse num gesto de sofrimento incontido. Com as pálpebras fechadas forçosamente, não consegue reparar quando a mão pequena, entretanto calejada, ergue-se mais uma vez à procura de força, impulso; ainda assim, pressente a sua aproximação, num breve instante antes de ter o seu pequeno crânio secamente ferido. Engula esse choro, sabe como ele se irrita mais quando você chora, sabe disso!. Dos olhos tão marejados, nenhuma lágrima caiu, escorrendo pelas bochechas para pingar no contorno do queixo; assim como nenhum berro fugiu pela sua boca, num querer desesperado por cessar as pancadas suportadas. Imóvel como uma estátua de gesso – um querubim, quiçá –, o pequeno permaneceu sentado.
Largue o garoto, miserável! Quer matá-lo?” consegue ouvir, antes de ter o cabelo amassado do lado direito da cabeça, o mesmo lado em que o primeiro golpe fora desferido. É minha mãe!, ele reconhece antes de ser arrancado desta terra sem deus para ser cuspido numa penumbra incompreensível em que a sanidade perambula pelos ares sem encontrar repouso. “Não! Não faça isso, eu imploro!”. A atribulada cabeça é lançada uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove vezes contra o azulejo branco com agradáveis detalhes floridos de cor azulada e violeta. O espanto o alcança antes da dor, que, não tão lenta, o rasga por inteiro.
Incapaz de resistir, ele desmaia.
Gritos. Desesperados gritos. Voltando a si, o menino reconhece a voz: é a mesma de antes, é sua mãe, aquela que padece, contra uma parede branca, pelas mãos daquele que a desposou e a subjugou através de um casamento diante dos homens e diante de um deus emudecido. Deixará que morra o ventre que te gerou? Deixará que padeça aquela que, pela sua salvação, arriscou a própria existência? É o que se pergunta incontáveis vezes, talvez, confiando que a repetição seja capaz de cingir de força as pernas finas e bambas, e encher de coragem o peito – que era pouco mais que um roto tecido cobrindo um amontoado de ossos.
Se os berros animalescos daquele homem – que, podendo esporrá-lo no ralo, desejou plantá-lo no vão das coxas de uma mulher – não tivessem silenciado os gritos maternais, talvez a sua ousadia não fosse abalada. Ele a matou? A minha mãe morreu?! Morta para me salvar? Põe-se de pé com celeridade, derrubando a cadeira que, chocando-se contra o chão, faz um grande estardalhaço. Alcançando o puxador de uma gaveta, busca uma faca de cortar carne (não será carne o que cortarei?) e, mesmo com os joelhos vacilantes, penetra no estreito corredor sem iluminação.
O homem, que também era besta-fera, abriu a mão que apertava o pescoço da mulher de boca aberta e olhos esbugalhados, e encarou o pequenino. A diminuta mão sua, mas, ao invés de afrouxar a palma e os dedos, o cabo é apertado com mais força, desespero. “Largue a faca, moleque!” seu pai esbraveja, “comeu merda, por acaso?”. Comi? As coisas estão confusas, o crânio ainda dói, as mãos molhadas tremem, os joelhos fraquejam. Ele não cede espaço, apesar de tudo; antes, olhando aquela que o amou e o embalou com a coberta em noites gélidas, cantarolou belíssimas canções em madrugadas tempestivas, saltou rumo ao corpo roliço e atarracado daquele que, se engalfinhando vorazmente, terminou por guinchar de dor.
Descobre que não há espaço para a culpa. Somente um ódio frio, incapaz de incendiá-lo, agindo, entretanto, como um forte vento empurrando uma inútil folha ao relento. Encara-o forçar a mão contra o abdômen rasgado donde o sangue escorre. O mesmo sangue que o meu! “O que fez? Esfaqueou o seu próprio pai? Que diabo é você?” o gigante vencido vocifera, enquanto se arrasta para o quarto através de passos vagarosos e pesados. “O que fez?! Está louco?!” outro grito o questiona, o grito feminino de sua mãe que, alisando o próprio pescoço avermelhado por causa do sufocamento, lança rumo aos olhos de sua cria um olhar envenenado de desprezo, repugnância. Estático, o pequeno não entende quando ela se levanta e corre para a figura ensanguentada sobre a cama, vertendo mil beijos na boca que amaldiçoava os céus e a terra. Por que ela o escolheu? Que fiz para que, dentre os dois, fosse eu o rejeitado?, perguntou-se por anos, tomando cuidado para que os seus pensamentos, desde então confusos, não fossem ouvidos e renegados por qualquer outra criatura.
Quando o corpo flagelado de sua mãe se ergueu do chão e passou pelos umbrais da porta do quarto do casal, debulhando-se sobre o leito, o fio que a ligava ao filho fora rompido brutalmente. No exato milésimo e de uma única vez como num corte. O corte que, antes do fio que unia o seu coração ao dela, fincava o seu umbigo à caverna que o vomitara numa noite de inverno; o cordão que fora rompido, ao ser expulso do casulo que o protegia de qualquer sofrimento, decepção, desespero. Decepado o segundo e último laço, a pequena criança se sente só, profundamente só, e então chora.
A faca ensanguentada cai tilintando ao tocar o piso e um profundo silêncio invade todos os cômodos.
Não há mais o que dizer, apenas lamentar.

Um comentário:

  1. Lindo! Me pergunto se esse conto teria um fundo real de experiência própria.

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