quarta-feira, 23 de agosto de 2017

João Gabriel Madeira Pontes

João Gabriel Madeira Pontes é um poeta brasileiro nascido em 1992.
Formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em outubro de 2016, lançou seu livro de estreia, Indiscrição, pela editora Kazuá.
Já teve seu trabalho publicado nas revistas brasileiras Modo de Usar & Co., Escamandro, Mallarmargens, Gueto, Diversos Afins, e nas portuguesas InComunidade e Enfermaria 6.  




Rebanhos rebeldes


Almas desesperadas eu vos amo.
Murilo Mendes, Mapa


Isto não é um poema.
Isto é uma compilação
de bilhetes suicidas.

Homens aflitos,
meus irmãos de lama,
emprestai-me

                        vossos oráculos.

Anjos degredados das Américas,

ex-votos irrecuperáveis,
andrajos em romaria,
somos a membrana esticada sobre o fuste,
não o som que o tambor produz.

Gloriosas vozes da África,

            o que é o talento
                        para os acumuladores compulsivos?

– Ave, parricidas sanguinários!
– Ave, renitente pedra de Sísifo!
– Ave, Imperator, morituri te salutant!

Totens – sem tabus – da Europa,

cujas fornalhas devoram
os melhores exemplares
das melhores estirpes

                                               e cospem

            peles & ossos & falos
                                   condecorados,

lede, na fachada
das repartições públicas
e nas sedes
das burocracias,
as austeras letras garrafais:

                        ARBEIT MACHT FREI.

Sábios camaleônicos da Ásia,
Crusoés tatuados da Oceania,

Manoel de Barros está morto.
E morreu porque ainda preferimos
a funcionalidade dos manuais de especulação financeira
à beleza humilde

                                               das lagartas.

Inércia, meu único destino.
Inércia, o único destino dos homens
de meu tempo, de meus iguais.
Ao menos, conforta-me a fantasia de que os mártires também
teriam lamentado a partida definitiva do poeta se tivessem
idade suficiente para entender o que ela representa.

Gondwanas tresloucadas,
Laurásias perplexas,

em uma surrada tira de papel, designei-vos
algumas tarefas:

            1. arrancar da mão do professor misericordioso o giz;
            2. ressuscitar Lázaro;
            3. trocar a lâmpada queimada no quarto de hóspedes;
            4. do barro, fazer um deus que se admita negligente.

Sou aquele a quem tentam convencer
de que não sou,
uma palavra à qual se impõe

                                               univocidade.

Falsas Pangeias globalizadas,

deixai-me admirar, delirantes
como magníficas alucinações,

            as hecatombes.

Ei-las, à sombra imortal
das pirâmides do tempo,

            as hecatombes!




#




Homenagem a Gertrude Stein


Além das montanhas,
através da cerração,
o vidro trincado.
Teia no vidro no vale.
Na varanda, gaiolas
sem pássaros.
A tela de proteção
indica a presença
de crianças ou de bichos
de estimação.
O chão é de granito,
é frio.
Não há porta-retratos.
As fotografias estão
guardadas porque
encarar a passagem
do tempo nos torna
um pouco mais graves.
Antigos móveis
reformados decoram
os cômodos.
Antigos sentimentos
reformados decoram
os corredores escuros
do coração da mãe.
Os vestígios do cigarro
nas mãos e no hálito do pai.
Dois, três, quatro maços
por dia – isso é exagero.
Pare de fumar ou você
não verá seu filho crescer.
O menino convulsiona.
É febre.
Não é necessário buscar
explicações para uma febre.
Febre é uma febre é uma febre
é uma febre.
Cuidado, leitor desavisado:
isto não é uma homenagem
a Gertrude Stein.
O título era apenas um chamariz
covarde.
Mea culpa.
O menino amadurecerá e as febres
cessarão quando ele completar
setenta e duas primaveras.
Não o sufoque, deixe-o brincar.
O que ele gosta de fazer?
Ele gosta de andar de bicicleta
e de montar quebra-cabeças e
ele quer um cachorro & um irmão mais novo,
pois está cansado de ser
filho único.
O menino se impressiona
com os filmes que passam na televisão
e inventa palavras antes de dormir.
O menino gosta do cheiro de mofo
na coxia do teatro.
Os refletores que iluminam a boca
de cena remontam às velas no altar
de uma igreja: lanternas mágicas.
E há uma igreja no colégio que
o menino frequenta e isso o perturba.
Um mosteiro sobre uma colina.
O trágico & o sagrado perseguem
o menino.
Deus a conta-gotas ou Sófocles em pedaços:
qual deles detém
a resposta definitiva?
qual deles ajudará
o menino a escrever
uma homenagem a Gertrude Stein?
Além da cerração,
através das montanhas,
o vale trincado.
Vidro na teia no vidro.
Nas gaiolas, varandas
sem pássaros.
As crianças & os bichos
de estimação
indicam a presença
de tela de proteção.
O chão é de porta-retratos,
é grave.
Não há granito.
O tempo está
guardado porque
encarar a passagem
das fotografias nos torna
um pouco mais frios.
Antigos cômodos
decorados reformam
os móveis.
Antigos corredores
decorados reformam
os sentimentos escuros
do coração do pai.
Os vestígios das mãos e do hálito
nos cigarros da mãe.
Dois, três, quatro maços
por filho – isso é exagero.
Pare de fumar ou você
não verá seu dia crescer.
Gertrude Stein convulsiona.
É explicação.
Não é necessário buscar
febres para uma explicação.
Explicação é uma explicação é uma explicação
é uma explicação.
Desaviso, leitor cuidadoso:
isto não é uma homenagem
ao menino.
O mea-culpa era apenas um chamariz.
Título covarde.
As primaveras amadurecerão e Gertrude Stein
cessará quando ela completar
setenta e duas febres.
Não a deixe brincar, sufoque-a.
O que ela gosta de fazer?
Ela gosta de andar de quebra-cabeças
e de montar bicicletas e
ela quer um filho único & um cachorro,
pois está cansada de ser
irmã mais nova.
Gertrude Stein se impressiona
com as palavras que passam na televisão
e inventa filmes antes de dormir.
Gertrude Stein gosta do cheiro de teatro
no mofo da coxia.
Os refletores que iluminam o altar
de uma igreja remontam às velas na boca
de cena: colinas mágicas.
E há um colégio na igreja que
Gertrude Stein frequenta e isso a perturba.
Uma lanterna sobre um mosteiro.
Gertrude Stein persegue
o trágico & o sagrado.
Sófocles a conta-gotas ou Deus em pedaços:
qual deles detém
a homenagem definitiva?
qual deles ajudará
Gertrude Stein a escrever

uma resposta ao menino?

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Casé Lontra Marques

Casé Lontra Marques é um poeta nascido em Volta Redonda, Rio de Janeiro, em 1985. Publicou os livros Mares inacabados (2008), Campo de ampliação (2009), A densidade do céu sobre a demolição (2009), Quando apenas se aproximam os rumores de chuva (2009), Saber o sol do esquecimento (2010), Movo as mãos queimadas sob a água (2011) e Indícios do dia (2011).
Atualmente mora em Vitória, no Espírito Santo.
Reúne o que escreve em sua página, onde seus livros podem ser lidos integralmente.



Quem não pode tocar procurará destruir?

Quem não pode tocar procurará destruir? Aquele que não canta diz: morro quando sou indiferença, quando estou imune ao mundo (a incerteza instala no dia o vestígio de uma vida acidamente incisiva). Ao estender sobre o tronco outra fome, penetro, como posso, o que me reparte, o que nos desvia em direção ao movimento

extremo. Este, sem gesto, insiste, apesar de não saber sustentar o que irá relatar: a figura aqui manifesta não se faz nomear. Sua voz — um feixe de falas aniquiladas quando calcificadas — não se deixa depositar sob um dispositivo

preciso, sob uma engrenagem exata.Como descrever a saliva que desliza pela ferida? Está desperta: saio cega do hospital, ainda consegue dizer, depois de alcançar a calçada, ainda consegue andar, decido não mais confiar sequer na luz a devastar minha vista (sigo apenas uma perturbação assídua): exposta

ao sol do desabrigo, talho no tempo — com mãos trabalhadas pelo estímulo ao ritmo — o rosto que restaurará

meu filho, preenchendo o espaço com alguma possibilidade de presença; embora não pronuncie um indício de palavra, estremeço com a concentração de tantas vozes desencontradas (seu silêncio

condensa a cegueira de experiências amputadas tanto de tato

quanto de fala). Sempre

ameaçada por uma pressa, custo a acreditar que persisto

parada: hesito, apesar de excitada, o próximo passo, continua a dizer, que me depreda, continua a andar, que me despedaça. Descontaminada do tremor de agora, repousaria a testa no vidro da janela — num instante

livre do vício de fácil alívio — para aprender

uma manhã desordenadamente

atravessada pela possibilidade de voragem, enquanto configuro a voz com que meu filho construía suas inquietações, envolvendo

minha atenção num idioma a princípio pausado, logo após efusivo, cujo sentido incitava as águas do paladar: encontro

a cor dos timbres, o compasso

da respiração, perdendo,

no entanto, a trama de intensidades

que desestabiliza a articulação das expressões mais provisórias: pressinto — mesmo empedrada — a necessidade de inventar outro modo de tatear: tocada pela velocidade, abro todas as pálpebras para a violência que invade minhas vozes, que revolve minhas veias, temendo as marcas

impossíveis de me identificar, a inexistência não dos cortes, mas da pele continuamente a se lanhar: intrometida na claridade do dia, esqueço

de fazer meus dedos buscarem alguém debaixo da camisa vazia: suspeito sobretudo das presenças que — insustentavelmente palpáveis — povoam

as brechas dos meus breves corpos (a persistência

dos ecos de novo refeitos

tritura o junco dos seus joelhos): cubro a garganta com as primeiras mãos da manhã, como se quisesse deter o percurso

de algo prestes a desaparecer: por mais

que insista

em permanecer inofensiva — embrulhando a garganta

nas mãos — enquanto preparo

as poucas palavras

com que iniciaremos um grito sucinto.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Ray Cruz

Ray Cruz é um poeta que sobrevive na periferia da periferia de Brasília: Cidade Ocidental.
Em 2006 participou da micro antologia escolar Veias de Poeta. Em 2017 teve poemas publicados na antologia Seres da Noite, pela editora INDE.
É filho adotivo da Iluzine e posta seus poemas em sua página no Facebook, Deus Cadela, e em seu blog pessoal: Exu do Absurdo.



Bela


Bela devia ter uns 50 anos branca bronzeado câncer obesa com olhos verde esmeralda & dentes amarronzados bem tortos fumante de Euro voz de criança mentalidade fetal tetra-viuvinha prestes a se casar em um relacionamento abusivo ganhou um carro em um sorteio local & perdeu a passagem pra Paracatu-Mg desesperada lamenta & me oferece os cigarros de seu último maço segunda feira 02/01/2017 será que ela sobreviveu no infernal Valparaíso? nunca saberei eu devia ter decorado o número dela mas sinto que Belatriz está em um lugar melhor afinal foi ela que vigiou minhas malas.




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Tenho fé


perscrutando as superfícies do Incompreensível com olhos adictos mendigando esperanças zumbis cavo em busca do manual de instruções do sentir-se habitante do Tempo.

tenho fé em todos os pontos de interrogação talvez eu ainda não tenha aprendido a conjugar o verbo ser no período de uma ação tragam-me livros de gramática ou um mapa que envenene o desejo de partir.

enquanto me embriago com a indiferença cósmica que invade meus pulmões pungentes aceito que o sentido da vida é não haver sentido em crer haver algum sentido no processo de sentir existir

dependente de quimeras afáveis conquisto o mundo inteiro com o passo seguinte protelado e consagrado

tudo que não sei me maça amassa & embaça.




#




L'espirit d'escalier


outra ressaca dislexia espiritual um inverno relâmpago do lado interno do esterno

o cinzeiro transborda minha pálpebra também não consigo beber essa sede

someone take these dreams away that point to me another day

um cadafalso me espreita em cada passo

Joy Division flambando minha autofagia meu riso retardado continua martelando algum parafuso frouxo na minha consciência insanitária

fechado para reforma tento digerir outro ontem que jamais vai voltar ou se repetir

um ego ereto machuca muita gente dois egos eretos machucam machucam MUITO maaiis

fechado para reforma este jardim de cactos assustado com o reflexo não quer mais esquecer sua omissão de cada dia seu foda-se engasgado enquanto narcisa nas poças sociais

não preciso mais de um dicionário pra entender a palavra ARREPENDIMENTO acendo uma vela para Santa Tristessa vejo seus olhos úmidos ancorando minha cabeça

fechado para reforma procuro a palavra SUPERAÇÃO amanhecendo em um horizonte maduro
someone take these dreams away that point to me another day

agora percebo porque a palavra E S C R O T O é um adjetivo que todo homem carrega

fechado para reforma eu só quero encontrar a palavra QUILOMBO escondida nas clareiras mais negras de nosso coração siamês