Marília Garcia é uma escritora, tradutora e editora brasileira
nascida no Rio de Janeiro em 1979. É formada em Letras e doutora em
Literatura Comparada e traduziu,
entre outros, textos de Emmanuel Hocquard, Gertrude Stein e Kenneth Koch.
Publicou os livros
Encontro às cegas (Rio de Janeiro,
Moby Dick, 2001/ Meegamíni, 2014), 20
poemas para o seu walkman (São
Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7Letras, 2007/ Bahía Blanca, Argentina: Vox
Editorial, 2013), Engano geográfico (Rio de Janeiro: 7letras, 2012/ Barcelona,
2015), Um teste de resistores
(Rio de Janeiro: 7letras, 2014 / Lisboa: Mariposa Azual, 2015) e Paris não tem centro (Megamíni, 2015).
Participou de
encontros e festivais de poesia ao redor do mundo, realizando performances e
leituras, e foi co-editora, com os poetas Angélica Freitas, Fabiano
Calixto e Ricardo
Domeneck, da revista de poesia Modo de Usar & Co.
Em 2015, fundou a
LunaPARQUE Edições, com o poeta Leonardo Gandolfi.
Atualmente mora em São Paulo e trabalha principalmente com
tradução.
Recentemente, a editora
carioca 7Letras relançou novas edições do seu primeiro livro, 20 poemas para o seu walkman, assim como
dos mais recentes Um teste de resistores
e Paris não tem centro – que sai em versão ampliada, com 3 partes a mais
que o original.
Marília é uma das autoras convidadas da programação oficial da
Flip deste ano, que homenageia Ana Cristina Cesar. Não à toa, em 2008 Marília
participou da antologia a nossos pés, em
homenagem a Ana, organizada pelo Manoel Ricardo de Lima e
publicada pelas editoras Da Casa e Dantes. Nesta antologia, a poeta colocou
o livro a teus pés, de Ana
C., em ordem alfabética e depois escreveu um poema, usando alguns
trechos da letra a.
Abaixo seguem poemas da autora que foram publicados
anteriormente em seus livros, antologias e nas revistas Modo de usar & co.,
Mallarmargens e O Garibaldi # 6, além, é claro, do poema “a garota de belfast ordena
a teus pés alfabeticamente”, da
supracitada antologia, seguido por um vídeo com a leitura do mesmo.
Svetlana
na véspera de sua partida para
ny, emmanuel hocquard datilografa
um poema de george oppen
em sua máquina de escrever
underwood n. 3. é como svetlana querendo voltar
para barcelona aqui não fico
mais nem um dia dizia no café
com nome grego que
lhe fazia falta ver as coisas
invisíveis daquela cidade e seu marido
na contramão carregando
no braço o menino sem língua,
tentando alcançar o que
aparecia do outro lado do mar
se alguém ainda viria
para ajudá-los
nesta época
do ano a tormenta não costuma
demorar (o poema era em inglês)
e tinham medo de se perder,
ela dizia, por isso a distância,
ritmo de degrau seguindo
cortado, por isso
o modo de andar e
o ziguezague do avião sempre que saíam juntos.
tinham medo e todos os dias fazia
algo para evitar. depois queria
encontrá-lo na rua,
perdido, como um acidente:
cruza uma esquina e vê. desligou
a chamada na hora
precisa, a voz cortada outra
vez antes de seguir
pelas ramblas.
ny, emmanuel hocquard datilografa
um poema de george oppen
em sua máquina de escrever
underwood n. 3. é como svetlana querendo voltar
para barcelona aqui não fico
mais nem um dia dizia no café
com nome grego que
lhe fazia falta ver as coisas
invisíveis daquela cidade e seu marido
na contramão carregando
no braço o menino sem língua,
tentando alcançar o que
aparecia do outro lado do mar
se alguém ainda viria
para ajudá-los
nesta época
do ano a tormenta não costuma
demorar (o poema era em inglês)
e tinham medo de se perder,
ela dizia, por isso a distância,
ritmo de degrau seguindo
cortado, por isso
o modo de andar e
o ziguezague do avião sempre que saíam juntos.
tinham medo e todos os dias fazia
algo para evitar. depois queria
encontrá-lo na rua,
perdido, como um acidente:
cruza uma esquina e vê. desligou
a chamada na hora
precisa, a voz cortada outra
vez antes de seguir
pelas ramblas.
#
De saída
TEZONTLE
queria falar das pedras vulcânicas neste lugar
descreva
ela diz escreva sobre o tom e a
cor e como foi
chegar –
mas antes vi o cinza
a lataria do avião cinza escuro
e gasta
você vê o bico estacionado e pensa
que não vai conseguir entrar numa máquina cinza escuro e
gasta
lembra a guerra
lembra um avião de caça
lembra que um dia precisei subir num avião de hélice
mas o pior mesmo
é quando você está no alto e vê que ela está gasta
tem uns reflexos luminosos
que poderiam ser brilho luz sol
refletindo
mas na verdade é como se o bico do avião tivesse batido
em pássaros que atravessam as nuvens lá no alto
ou o bico contra pedras de gelo
a 10 mil pés de altura
“atenção
agora atravessamos os 10 mil pés de altura”
ouve o piloto
e ali já pode algo talvez ouvir música um filme
pensar no que acontece quando uma máquina
começa a voar e você está dentro dela
essa semana nevou demais
ouve a senhora ao lado dizer
eles jogam sal na rua
para poder andar sobre a neve
dirigir é sempre a maior tensão
por causa dos veados que atravessam correndo
que atravessam os anos que vão passando
que atravessam as nuvens como a gente
não sabe o que pensar quando chega
numa cidade assim
descreva
ela diz
“já reparou que as cidades são velhas ou futuristas?”
estou no 20º andar de um prédio que dá para uma enorme antena
quando cheguei e vi
pensei que fosse uma cidade futurista cheia de arranha-céus
prateados
mas ela é toda baixinha por causa dos terremotos
com ruínas de mais de dois mil anos
os prédios baixinhos
e as construções de pedras vermelhas
as paredes de um tom vermelho escuro e fechado
você quis dizer “tijolos”?
ele pergunta quando você tenta explicar o que são paredes
vermelhas
não
são pedras de origem vulcânica
tzontle
#
Uma mulher que se afoga
coloco a mão sobre o seu joelho
e você me olha de frente
mas
depois vira de lado ajeitando o
retrovisor por causa da chuva e eu quero dizer que aquela
frase era de uma canção, a mesma que você tinha usado
em outro lugar, então de novo você me olha
de frente
e
sorri interrogando
minha expressão sempre confusa
e eu queria dizer que na viagem fraquejei
que tenho medo de enlouquecer
que tenho medo do que está
por vir mas acabo contando a história
do homem que perguntava
você me ama?
depois
de anos casado com a mesma mulher
e ela dizia
não
e ele com aquela música repetindo na cabeça
aquela música sem parar tocando
ao fundo ecoando
e ela
não
e ele perguntava
será
que eu sou louco?
perguntava depois que o barco na enseada
ela indo embora, fugindo
eu sou louco?
perguntava depois do acidente, do barco apagando
bajo la lluvia, 24 vezes a mesma carta enviada com o nome
dela
e o telefone chamando
na bolsa
hoje
ela me viu na rua e veio contar
o que tinha acontecido: vontade de gritar
vai embora daqui
não
quero mais ouvir essa voz
e ela falando sem parar e eu
coloco a mão sobre seu joelho e você
me olha na hora e ela dizendo na rua que
não tinha me reconhecido
antes
por
que então veio falar comigo?
mas não digo só penso e aquele silêncio
e ela dizendo que foi
por acaso
tudo
bem
de
agora em diante
e eu pensando não me lembro o que dizer
nessas horas, não suporto, será que um dia?,
e você coloca a mão sobre o meu joelho e eu
olho para você de frente, ainda ouvindo canção
pergunta gritos de
afogamento
será
que eu sou louco?
e digo que você é uma das poucas
pessoas que quero que fiquem aqui
e você me responde
nunca sonhei em conhecer alguém
como você
e eu olho de volta e digo
você
sabe que ninguém nunca
segurou minha
mão assim?
você vira de lado ajeitando
o retrovisor e se projeta pra ultrapassar
o carro da frente.
#
Estereofonia
nunca falei tão sério,
disse e olhei pra cima: seu rosto no
meio das gotas o guarda-chuva
preto como uma moldura redonda e você parado
cantando virado para o vidro do carro
sem ouvir mais nada
e a voz
e
a voz
e a
voz cantando no meio da chuva
não pó-sso
mais...
virado para o vidro do carro
isso podia ser você, mas o caminho mais rápido
de um ponto a outro, ele diz.
e eu olhei pra cima:
pierre, arrependido, conta que
perto dali uma mulher entrou no
bar. ela tinha o seu nome.
_____: no, no es verdad.
LA CHICA: você estava lá?
_____: ela se chamava doris salcedo.
podia ter vindo de outro lugar, olhando pra longe,
os cílios partidos,
e a voz cantando no meio da
chuva
mas o caminho mais rápido, me diz, e
eu olho pra cima e lembro da cor malva
e dele dizendo que é quase
malva. tem um pingo tornando malva
mas a única cor que lembro
era o nublado daquele dia
a única cor que lembro era o
chumbo daquela vez
e
eu olho pra cima você descia
as escadas,
no último degrau já sabe
– cada curva contém 15 passos. ou será só um poema
essa viagem muda em ziguezague atravessando
asfalto, algarismos de velocidade
e raios de esquecimento?
sendo assim seu poema tem 15 passos, conta os metros
enquanto vai dizendo o poema caminhando mas
daquele dia vejo só o chumbo e a voz
no vidro do carro.
depois levanto um braço o guarda-chuva preto
moldura para descongelar cada um dos 24 degraus
para descongelar a ordem do verso seguinte.
panorâmica, golpe e locutor:
– você vai sempre pelo som?
– que som?
#
A garota de belfast ordena a teus pés alfabeticamente
98 voltas pelo parque antes de cair em
círculos sobre o próprio peso
98 voltas pelo parque antes de cair em
círculos sobre o próprio peso
98 vezes ela dizia o mesmo:
você pode ou não pensar em algo
definitivo.parecia a garota de belfast com
sua memória dobrada
como um paraquedas
dentro do tecido eletrizado.
dentro do tecido eletrizado.
enquanto falava
descia a
escada lateral recortando os ruídos
da orquestra. a roda da bicicleta
girando em loop esfarelando os
reflexos no ar e seis horas parada diante
do ralo, pode ou não pensar em algo, sentada na beira do
quarto. olha de longe quando o carro
passa, descer à noite pelos trilhos
quando tudo é uma vingança
escada lateral recortando os ruídos
da orquestra. a roda da bicicleta
girando em loop esfarelando os
reflexos no ar e seis horas parada diante
do ralo, pode ou não pensar em algo, sentada na beira do
quarto. olha de longe quando o carro
passa, descer à noite pelos trilhos
quando tudo é uma vingança
fala de pontes atravessando os túneis
da cidade e ordena a teus pés
alfabeticamente
a anoitecer sobre a cidade
a câmera em rasante
a correspondência
a curriola consolava
a dor
a espera
a intimidade era teatro
...
a tomar chá, quase na borda
a voz em off nas montanhas
abre a boca, deusa
da cidade e ordena a teus pés
alfabeticamente
a anoitecer sobre a cidade
a câmera em rasante
a correspondência
a curriola consolava
a dor
a espera
a intimidade era teatro
...
a tomar chá, quase na borda
a voz em off nas montanhas
abre a boca, deusa
abria
a cortina
acha
que é mentira
pode ou não pensar que era sua voz em mountain hill
a uma velocidade de 1 km/h ou mil. antes
de voltar para a irlanda já começara a perder. entende
que só depois de o blindex esfarinhado contra a
cabeça, só em poucos segundos até que a cabeça
contra o blindex, mas era apenas parte
do trajeto, não podia calcular as noites ou linhas
em que passaria.
“como extrair o
áudio de uma imagem
congelada” era a etiqueta que colava nas paredes
para tentar descobrir como chegar com precisão
e ao fundo a voz pela fresta
a ordenar este livro:
congelada” era a etiqueta que colava nas paredes
para tentar descobrir como chegar com precisão
e ao fundo a voz pela fresta
a ordenar este livro:
agora nessa contramão
agora chega
agora é a sua vez
agora estamos em movimento
agora pouco sentimental
água
água na boca
agulhadas
ou vertigem das alturas. você pode acordar trinta anos
depois com a imagem ainda mais viva
quando o quarto está às cegas
as cartas
as cartas, quando chegavam
as lupas desistem
as mulheres e as crianças
asas batendo
atravessa a ponte
atravessando a grande ponte
atravessa vários túneis da cidade
autobiografia. não, biografia
aviso que vou virando um avião
azul deixo as chaves soltas no balcão
azul que não me espanta
ou vertigem das alturas. você pode acordar trinta anos
depois com a imagem ainda mais viva
quando o quarto está às cegas
as cartas
as cartas, quando chegavam
as lupas desistem
as mulheres e as crianças
asas batendo
atravessa a ponte
atravessando a grande ponte
atravessa vários túneis da cidade
autobiografia. não, biografia
aviso que vou virando um avião
azul deixo as chaves soltas no balcão
azul que não me espanta
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