quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Três poemas inéditos de Fernanda Vivacqua

Fernanda Vivacqua é uma poeta nascida no Rio de Janeiro, em 1992, mas cresceu em Juiz de Fora/MG, onde vive até hoje. Conclui esse ano a graduação em Letras, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Teve seu primeiro poema publicado na revista OGaribaldi e estreia em livro com Maria Célia. Participa do corpo editorial das Edições Macondo.


“Muitas mulheres atravessam o livro de estreia de Fernanda Vivacqua, Maria Célia. Não é surpresa que mais uma voz feminina surja neste cenário e que, apesar do caráter de estreia, traga a consistência de um projeto poético que parece ter sido construído com muito cuidado. Fernanda possui aquela rara capacidade de hipnose com a voz que é tão importante para os poetas cantores que sobrevivem os séculos.
Uma entre as várias, a personagem que dá título ao livro pode ser o retrato da avó como a memória soube carregar, ou um reflexo dessa mesma avó que ainda vive, estático, no espelho. O que importa mesmo, no poema ou neste livro, é como o nome fica marcado na memória e no espelho. Fernanda Vivacqua tende a escrever a memória como quem manipula um filme fotográfico. Presa no quadro a imagem parece reter toda a violência do indomável. Não é a memória, é uma fotografia. Isto, antes de tudo, é um livro, não é a memória. Maria Célia é um acerto porque não se propõe a ser um álbum de memórias, mas se impõe como uma coleção de presenças. Cabe à estética pensar melhor a recepção e a nós leitores encontrar o livro não como uma seleta de retratos da autora. A memória é o que vem depois do poema e este é apenas o primeiro plano do filme." (excertos da resenha de Otávio Campos para a OGaribaldi #07)
 Abaixo, três poemas inéditos de Fernanda retirados de seu livro, Maria Célia.




era 1997

uma enchente nos escorreu

pelos dedos entrelaçados

da lama daquele ano

daquele ano do silêncio

dos vidros em estilhaços e das manhãs

as manhãs de 97

se você ainda pudesse ouvir

o que gritam aquelas manhãs

a água subia as escadas

nós em ciranda

dedos entrelaçados escravos de jó

em 1997

a água avançava

mas o nosso silêncio

ensurdecedor

o nosso silêncio era maior

que a água que 97

você com os dedos

ora frouxos, ora presos

e eu com minhas unhas curtas

a querer fincar na pele

o que você não sente o que

não te bate

com a água no joelho

nossos pés dançaram submersos

acima da escada brincamos de deuses

eu Iemanjá, ainda sem saber

era 1997 não 79

quando você ainda não poderia saber

que triste deus seria

das enchentes e dos silêncios

dos estilhaços e das lamas

daquilo tudo que a água leva

em seu balanço

que vai e vem

sobe escadas lava tudo

lava um ano

sem nada conservar



eu não te encontrei no mar

você é da casa

e eu te deixei lá



você se lembra?



#



em paris tem umas feiras que vendem
de tudo um pouco
xícaras com asas quebradas
garfos sem dentes
e sapatos sem par
acho que os turistas gostam porque é
francês e isso já parece bastar
aos turistas que vão às feiras
as feiras que vendem de tudo em paris
e vendem fotos
fotos de pessoas que não conhecemos
e nem vamos fotos de
lugares que podem ser
na frança ou no brasil
ou em moçambique ou em angola
sim eu gostaria que fosse lusófono
essas fotos desses lugares
podem ter pessoas, como quatro
moças sentadas em um jardim em preto
e branco
ou essas fotos podem só ter lugares
como um santuário, agora apenas aberto
para visitação
um quarto com uma cama de solteiro
uma cadeira marrom de madeira em branco
e preto
poderia ser o quarto do van gogh
mas aí a foto da feira
valeria milhões, então ela é apenas
uma foto de um quarto com uma cadeira
onde você poderia estar no tempo em que
as fotos em preto e branco eram apenas
fotos
e você poderia odiar aquele lugar
e eu espero que você seja lusófono
para poder sentir saudades de um outro lugar
que você viu em um quadro, ou mesmo em uma
foto na casa de um amigo
casa não fotografada esquecida
e então se um dia eu for à frança
e forauma feira em paris
dessas que vendem de tudo e então
a gente poderia se encontrar e torcer
eu não falo francês.




#



agora do lado de fora além
da janela da cozinha eles
tateiam o chão de seda enquanto
aqui pisamos seguimos
pisando em tesouras abertas
tesouras abertas em chão de vidro
no de seda eles de fora da janela
tateiam o branco transparente
e eu não sei a cor
mas nossos pés sobre
tesouras abertas no chão
de vidro marcham ou marchariam
se soubessem enquanto pisam
mas eles tateiam de olhos
bem abertos enquanto nós
aproveitamos o passeio
o passeio sobre tesouras abertas

um dia me disse o
meu amigo sobre as coisas
prosaicas e uma nova palavra
eu queria passar
um café enquanto meus dedos
apontavam para a janela e eu
o meu amigo e a nova
palavra esperávamos o café
enquanto isso os dedos
daqueles que tateiam eram
como fios em novelo
e nossos pés ainda hoje
sangram debaixo da mesa

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