Fernanda
Vivacqua é uma poeta nascida no Rio de Janeiro, em 1992, mas cresceu em
Juiz de Fora/MG, onde vive até hoje. Conclui esse ano a graduação em Letras, na
Universidade Federal de Juiz de Fora. Teve seu primeiro poema publicado na
revista OGaribaldi e estreia em livro com Maria
Célia. Participa do corpo editorial das Edições Macondo.
“Muitas mulheres
atravessam o livro de estreia de Fernanda Vivacqua, Maria Célia. Não é surpresa que mais uma voz feminina surja neste
cenário e que, apesar do caráter de estreia, traga a consistência de um projeto
poético que parece ter sido construído com muito cuidado. Fernanda possui
aquela rara capacidade de hipnose com a voz que é tão importante para os poetas
cantores que sobrevivem os séculos.
Uma entre as várias, a
personagem que dá título ao livro pode ser o retrato da avó como a memória
soube carregar, ou um reflexo dessa mesma avó que ainda vive, estático, no
espelho. O que importa mesmo, no poema ou neste livro, é como o nome fica
marcado na memória e no espelho. Fernanda Vivacqua tende a escrever a memória
como quem manipula um filme fotográfico. Presa no quadro a imagem parece reter
toda a violência do indomável. Não é a memória, é uma fotografia. Isto, antes
de tudo, é um livro, não é a memória. Maria
Célia é um acerto porque não se propõe a ser um álbum de memórias, mas se
impõe como uma coleção de presenças. Cabe à estética pensar melhor a recepção e
a nós leitores encontrar o livro não como uma seleta de retratos da autora. A
memória é o que vem depois do poema e este é apenas o primeiro plano do filme." (excertos
da resenha de Otávio Campos para a OGaribaldi #07)
Abaixo, três poemas inéditos de Fernanda retirados de seu livro, Maria Célia.
era 1997
uma enchente nos
escorreu
pelos dedos
entrelaçados
da lama daquele ano
daquele ano do silêncio
dos vidros em
estilhaços e das manhãs
as manhãs de 97
se você ainda pudesse
ouvir
o que gritam aquelas
manhãs
a água subia as escadas
nós em ciranda
dedos entrelaçados
escravos de jó
em 1997
a água avançava
mas o nosso silêncio
ensurdecedor
o nosso silêncio era
maior
que a água que 97
você com os dedos
ora frouxos, ora presos
e eu com minhas unhas
curtas
a querer fincar na pele
o que você não sente o
que
não te bate
com a água no joelho
nossos pés dançaram
submersos
acima da escada
brincamos de deuses
eu Iemanjá, ainda sem
saber
era 1997 não 79
quando você ainda não
poderia saber
que triste deus seria
das enchentes e dos
silêncios
dos estilhaços e das
lamas
daquilo tudo que a água
leva
em seu balanço
que vai e vem
sobe escadas lava tudo
lava um ano
sem nada conservar
eu não te encontrei no
mar
você é da casa
e eu te deixei lá
você se lembra?
#
em paris tem umas feiras que vendem
de tudo um pouco
xícaras com asas quebradas
garfos sem dentes
e sapatos sem par
acho que os turistas gostam porque é
francês e isso já parece bastar
aos turistas que vão às feiras
as feiras que vendem de tudo em paris
e vendem fotos
fotos de pessoas que não conhecemos
e nem vamos fotos de
lugares que podem ser
na frança ou no brasil
ou em moçambique ou em angola
sim eu gostaria que fosse lusófono
essas fotos desses lugares
podem ter pessoas, como quatro
moças sentadas em um jardim em preto
e branco
ou essas fotos podem só ter lugares
como um santuário, agora apenas aberto
para visitação
um quarto com uma cama de solteiro
uma cadeira marrom de madeira em branco
e preto
poderia ser o quarto do van gogh
mas aí a foto da feira
valeria milhões, então ela é apenas
uma foto de um quarto com uma cadeira
onde você poderia estar no tempo em que
as fotos em preto e branco eram apenas
fotos
e você poderia odiar aquele lugar
e eu espero que você seja lusófono
para poder sentir saudades de um outro
lugar
que você viu em um quadro, ou mesmo em
uma
foto na casa de um amigo
casa não fotografada esquecida
e então se um dia eu for à frança
e forauma feira em paris
dessas que vendem de tudo e então
a gente poderia se encontrar e torcer
eu não falo francês.
#
agora do lado de fora além
da
janela da cozinha eles
tateiam
o chão de seda enquanto
aqui
pisamos seguimos
pisando
em tesouras abertas
tesouras
abertas em chão de vidro
no
de seda eles de fora da janela
tateiam
o branco transparente
e
eu não sei a cor
mas
nossos pés sobre
tesouras
abertas no chão
de
vidro marcham ou marchariam
se
soubessem enquanto pisam
mas
eles tateiam de olhos
bem
abertos enquanto nós
aproveitamos
o passeio
o
passeio sobre tesouras abertas
um
dia me disse o
meu
amigo sobre as coisas
eu
queria passar
um
café enquanto meus dedos
apontavam
para a janela e eu
o
meu amigo e a nova
palavra
esperávamos o café
enquanto
isso os dedos
daqueles
que tateiam eram
como
fios em novelo
e
nossos pés ainda hoje
sangram
debaixo da mesa
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