quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Frederico Klumb

Frederico Klumb é um poeta, roteirista e artista visual brasileiro nascido em 1990 no Rio de Janeiro.
Teve alguns de seus poemas publicados em revistas especializadas, como Modo de Usar & Co, Escamandro e Garupa e em 2016 publicou o volume Almanaque Rebolado (Azougue / Cozinha experimental / Edições Garupa), um guia artístico-pedagógico para fazer poesia, escrito a vinte mãos e fruto de residência no Centro Municipal de Artes Helio Oiticica (CMAHO).

Em 2017 publicou Arena (coleção megamini / 7letras) e teve seu curta-metragem Agharta selecionado e exibido em diversos festivais nacionais e internacionais de cinema, incluindo o Festival Internacional de Curta-metragens de Hamburgo. Ainda esse ano, dois livros de poemas estão confirmados: Máquinas mancas da manhã e Bichos contra a vontade (ambos no prelo e pela Edições Garupa).



do rio a são paulo um bebê chorava no avião

do alto as
espigas puxadas pelo espaço
em fuga da derme da terra
dirigem-se a plutão
antenas
comunicam-se com as cidades
civilizações distantes
e as varetas das asas
tremem
a criança pequena
molestada pela pressão das coisas
por crescer no meio da cidade
chora
por ter visto a terra de cima
antes mesmo de saber andar
e ser posta de volta
no chão




#




carne fria em três movimentos

I.

há um banner na estação do metrô:
morreu Jesus
houve um alvoroço
e qual nada
caiu como pedra
como se cai uma fruta
de copa de árvore
como se cai uma folha:
flutua em queda franca
num momento que dura
……………………..todo o tronco


como se cai
do inverso do duro
dum mole etéreo e plasmado
planando no ar
……………………..plumando
o ar
no esforço de tornar-se verde
e juntar-se à terra
e tornar-se tronco
e tornar-se copa
e tornar-se verde
apesar do marrom putrefato e dos vermes,
a fertilidade está sempre num buraco
…….Pois bem que morreu
Os homens reuniam-se em volta
muita coisa havia de ser feita

Tratou Mateus do que era histórico
do que era urgente
do que era
………………..arqueologia
já que não havia mais corpo
sumiu-se
Os outros três
trataram de estilo
da filosofia
do lago de fogo
que se estendia da Gólgota pela Palestina
Pois bem que morreu
talvez não tenha caído
há um banner na estação de trem
ele diz:
Foi por você.


II.
A janela do vagão joga luz no quarto
segundo em que tudo
é visível
alguém grita dois por um real
como as cores que tentam se mostrar
aparentemente pouquíssimo burocráticas
Há que se traduzir do português para o português
Há muita falha em nossa comunicação
ambiguidade
líquidos misturados
que mesmo líquido não são
como um vinho faísca de trinta reais
na garrafa cara com restos
de roxo
rastros do tempo
e resquícios da folha que era uva e caiu
como se cai uma folha
como se cai uma fruta
como se cai
……………………..tudo o que cai
e registros de riso
de uma gargalhada embriagada.
Próxima estação: Largo do Machado.

III.
Na rua
o sol se anuncia
desavergonhado
e dezenas de pessoas
fazem fila sem pressa
na porta de uma igreja
ao lado da pequena cruzada
e Palmira
cada vez mais perto dos olhos
zunindo de projéteis
sibilando em    sisz    vxuu
……………………………………….vxuu vxuu

assobiando apesar dos sinais fechados
aceno do meio do borrão apenas
um frame na janela
fazendo a colheita das crianças
acostumadas às cápsulas como às figurinhas
enquanto
do lado de dentro
padres trajados de branco
pastores
embalam senhoras
seguras nas ancas
de outras mais jovens
Eis o mistério da fé
ele diz
e sustenta a história
adornada em negro
de cruzes
sobre a lã do pálio que pesa os ombros




#




tu

detrás dos ladrilhos
grafados
na janela alta
       desse edifício
        no meio
de sua própria mancha há
alguma coisa
…………………………  que explode os quadros

ainda quando está nublado
a este fenômeno
esta claridade
difusa

os fotógrafos por vezes acrescentam
o diminutivo feito
que sentem como quem fabrica a própria luz

tenho inveja do pintor
pendurado num andaime
que sabe os canais de tv que se assiste nessa casa
se colocam sal nas batatas
como sentam-se nas cadeiras
se gritam uns com os outros quando estão com raiva
se têm coragem de chorar em público

sei que não pensa em mim
está protegido demais
……………………………sob a égide do andaime

a incerteza de seu ofício no sétimo andar
olhar a vida todos os dias do alto
está protegido demais das obviedades

deve pensar qual o desperdício
de acender velas para santos
que estão de pé cá embaixo
enquanto tão perto deles
os toca com as pontas dos dedos
sem precisar esticar-se 30 centímetros
e no que os cavalos pensam
com os jockeys montados
cientes de que os podem içar ao chão
sem precisar de braços ou pernas
se pudesse me ver
da altura de 30 metros
eu seria dois pontos no chão da cidade
veria os carros passando sem assombro
as máquinas mancas da manhã
funcionando ritmadas
o movimento fajuto da vida metálica

se fosse câmera nos via aqui
você a me dizer
que o que a gente têm é uma pequena revolução industrial

linda e terrível.




#




as baleias vivem toda a história

há uma baleia encalhada
debaixo de um viaduto
no meio do trânsito

seu corpo plástico
tem a mesma textura
do plástico dos painéis
dos carros
das placas dos restaurantes
brilhantes e lisas
platinadas
pela luz do meio dia

há o cheiro putrefato
da cidade
misturada à maresia
do sal que arranha o peito das crianças
que brincam com pranchas de borracha
indiferentes ao acidente

à vida movendo a feira
aos pescadores
de rosto dourado
que descamam peixes
deixam-os prontos para vender

e depositam suas páginas de livros
em cestas
velhas e puídas.

A carapinha que ainda reveste
a carne dos peixes
já nem tanto escama
conta a história
                  de mil migrações marinhas

há os turistas
que fotografam
motus animi continuus

há dentre as crianças
uma que chora

com medo das estórias
de bichos marinhos
que arrancam braços e pernas                                                                      
            com bocas gigantes

e outra que não consegue dizer
por uma afasia dos nervos
que lhe passa pelo corpo
uma legião de escombros e escamas
esfarelados em livros e barcos a motor
                                asfalto e sono

há todo o movimento
mas a baleia não se move

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Flávio Morgado

Flávio Morgado é um poeta nascido no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Um caderno de capa verde (7Letras, 2012)  e Uma nesga de sol a mais (7Letras, 2016).
Foi publicado em algumas antologias no Brasil e fora, sendo a mais recente É agora como nunca - antologia incompleta da poesia contemporânea (Companhia das Letras, 2017), organizada por Adriana Calcanhotto.
Os poemas abaixo foram selecionados de seus dois livros.


(foto de Raíssa Figueiredo


Brás de pina


brás de pina
janelas atentas
muros tristes e
ladeira igreja

ladeira-travessia,
prometeu subir, nunca chega
saudade de uma vida
que nunca passou

rio arapogi
sem flores
(índio sem cocar)

outras cores:
verde aposentado
azul a filha morreu antes do casamento
amarelo jogou no bangu
branco foi muito rico e perdeu tudo

as histórias se escrevem nos muros
(por isso eu chorava na porta de edson borracha)

muro-rosto
limo-lágrima

a casa de minha vó
bangalô, tijolinho
portão-barulho,
o jardim se salva nas plantas que a mão ainda rega
o marido se foi cedo demais

casas lidas
mundo à janela
e não precisávamos de mais nada
todos se sabiam
pela rua (sem entrar)

brás de pina
não se diz –
se debruça no dito –

e morre-se em varanda




#




Do sonho das coisas

sei que acordo não porque abri os olhos
ou sinto que não estou divagando
pelos delírios do entressonho.
pelo contrário,
é quando vejo a sombra de meu livro
sobre a parede como um livro aberto,
e o desperto do pássaro que ele pensava ser
que eu sei da tristeza de acordar.




#




Instruções ao esboço de um quadro


primeiro preencher
o brancocomo branco

para se reconhecer o que é a possibilidade.

o risco em vermelho
diminuias chances e impõe
recomeço

um canto negro
(a outra margem do branco)
encaminha ao infinito e ao talvez.

de limite, circule a iluminação do azul
(desenhe uma asa maior que o céu)

deixe a tinta tingir-se a si
em relevo
em erro
como mania de perfeição
(“estive aqui...”)


não assine. entregue à espera

deixe o quadro se apalpar



- a emoção corrige a regra.




#




Os seios de Halla Bhairi
para Gaza


não crescerão
os seios de Halla Bhairi.

não os veremos
desabrochar
- os próprios seios visam pétalas
que não despontam

e os de Halla Bhairi
nunca despontarão

(a jovem menina morta)

não terão olhos
os seios de Halla Bhairi
que mirem as mãos cuidadosas
de outro
jovem palestino
ou judeu
- porque a paz é surpreendente.

não sentirá o peso de seus
seios,
não os adornará com óleos,
não os deixará seminus
os seios de Halla Bhairi
a saber o que se ganha (e o que se perde)
por ter seios, Halla Bhairi.

não amamentarão
os seios de Halla Bhairi
um outro futuro (que talvez fosse livre)

porque interferimos a rota de seus
seios, Halla Bhairi

e ferir o futuro
é não parar de ferir o futuro
- matamos o filho de Halla Bhairi.


por isso, crescerá em nós
os seios de Halla Bhairi

o silencioso seio, o desmedido seio
ao peso de nossa Gaza:

ao homem imposto pela voz
sob a surdez
à mão ao gatilho que desfaz
o aperto
ao lucro ao revés
do preço


do afeto
estarão nus
os seios de Halla Bhairi

o silencioso seio, o reconhecível seio
ao peso de nossa casa.

e estarão a sós
             (em nós)
à revelia do que esquecemos
e incompletos e interrompidos

fazemos à guerra


- denegamos o amadurecimento.




#




A voz (ou esporro) de ferreira gullar


não viu sua morte um distraído.

não estava
aquele ensolarado dezembro
                          (como uma toalha úmida
sobre a avenida atlântica)
e do primeiro andar
o afeto da porta
da casa de avô
frustrou em grito:

“Porra! Cadê, porra?!”

(a voz do poema sujo)

eu o vi velho
mais que velho
velho velho
a vida contra o muro.

já vinha, desmonte fluido,
tornando-se pla
cie

desde os longos fios de cabelo
- estalactites,
magras e calmas
como sua permanência.

ainda o homem frente à morte:

sua voz de poeta, de incansável espanto
sua voz de carne e pus, de exílio e de perda
sua voz mais que turva
e acima de tudo, suja
- que sempre foi teu outro signo de pureza.

quanto real paga a vida?

guardou sua memória
no corpo
no outro
no novo
em folha

e sabe que vamos carregar seu fóssil

(aquele vestígio à espera da voz)

ubíquo voo dos versos,
ferreira gullar resiste.

resiste no medo em lamoneda
entre o punho e a queda
entre homens e filhos
coando delírios e espantos
na cidade que é o indivíduo.

resiste na perenidade do fato frente ao poema,
como uma vez desperta
desesperada
e de dentro do tempo.

convicta,
como um anjo que viu cair as asas,
atenta,
como um esteta da própria participação,

a poesia é mesmo um milagre
que ainda se alonga aos incrédulos.