quinta-feira, 30 de março de 2017

Silvia Relfer

Silvia Relfer é o pseudônimo de Silvia Fernandes, nascida em Italva, Rio de Janeiro, em 1967. Poeta e professora, graduou-se em Ciências Sociais na UFF/Niterói e tem pós-doutoramento na Universidade da Flórida, na mesma área.
Dedica-se ao estudo sociológico do fenômeno religioso e é amante das palavras e seus enigmas desde a infância.
Seu primeiro livro de poesias foi concluído aos 16 anos. Mais tarde os poemas foram lapidados e a autora ampliou a obra que se converteu em dois livros, ainda inéditos.
É professora universitária na UFRRJ e dedica-se a poesia como expressão e expansão da alma.
Em 2015, seu poema Sonâmbulo foi classificado em terceiro lugar no I Concurso Literário da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Vive no Rio de Janeiro desde 1982.




Sonâmbulo


O pouco que sei sobre você
embaraçou as linhas de minha
erudição.
As mãos fugidias de Pessoa
a pedra de Drummond
a serenata de Adélia Prado
a noite de João da Cruz
a alma de Gibran
o botão de Tagore
a morte anunciada de García-Márquez.
O muito que sei sobre você
matizou as rotas do meu
existir cambaleante.
Espero um metro para medir o amor
um dedo para apontar saídas
um livro para virar
a última página.
Talhei seu ostracismo
sem pérola esperada.
Talvez eu queira um pente
para ajeitar o desalinho
dos meus fios sonâmbulos.




#




Apelos


Lamento não ter criado asas,
rasgando a pele sempre
que despontassem em meus
ombros.
Colhi ervas daninhas,
pintei em telas inconscientes,
quebrei cristais.
Mas não cultivei asas
quando o desejo de infinito
atirou-me contra o vento,
e bradou suplicante.




#




Enigma


Nunca saberemos ao certo
se vivemos por saúde
ou por missão.

Nem se estamos apreendendo
a morte para viver depois.

Se alguém nos
ofusca em espera
dissonante;
se as estrelas
são reais;
se o amor não
é gente.  

A nós foram negadas
as respostas para
sermos insuportavelmente
indagantes.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Leonardo Marona

Leonardo Marona é um poeta nascido em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 1982. Publicou os livros de poesia Pequenas biografias não-autorizadas (7Letras, 2009), L’amore no (7Letras, 2011), Óleo das horas dormidas (Oficina Raquel, 2014), o livro de contos Conversa com leões (Oito e meio, 2012) e o romance Cossacos gentis (Oito e meio, 2015).
Tem no prelo a novela Dr. Krauss (Oito e meio), e lançará no Rio de Janeiro, na próxima semana, pela editora Garupa, o seu novo livro de poesia, Herói de Atari, do qual selecionamos os quatro poemas inéditos abaixo.



poema aos dentes decaídos de auxilio lacouture

rugas pregam peças nas tuas vontades magnânimas,
estás sempre a caminho de um outro acontecimento,
não paras nunca, não caminhas a pés vistos, há lama
nas calçadas da tua inóspita decisão de se abandonar
a uma tentativa divergente dos hospícios e das curas,
mas és uma pedra no vaso microscópico de um pênis,
és tuas roupas de frio espancadas pelas engrenagens
de limpeza, que estão à disposição das nossas usinas.

tua nova pele expele a água cinza do primeiro rótulo,
tuas coxas sedentárias são pilastras imorais do tempo
em que corrias contra o vento e não pensavas ainda
nos dentes decaídos de auxílio lacouture, pilastras
verdadeiras do que se tomba por tamanha beleza.
agora teus heróis juvenis estão amargos ou mortos,
andas confuso com relação ao pedaço que deixaste
e o pedaço (assustadoramente frio) do que és ainda.

deixaste o que só seria possível se estivesses morto
e te inauguras aos trancos nesta inédita dimensão,
veja bem, ainda não sabes quase nada da primeira,
mas a vida sempre foi o braço ríspido empurrando,
as frases possessas que tornam os humanos frágeis,
a boca que pende diante do que se pendura suicida.
assustado tu escreves à máquina de óculos escuros,
esperando dissipar os vapores da terrível maravilha.



#




elegia ao fim do mundo

um jardineiro é sempre
uma motivação.

eu não acharia ridículo
mais armadilhas,
um aspecto importante
que fica de fora.

dentro de todo jardim,
uma motivação,
para não achar ridículo
um jardineiro.

armadilhas são jardins
que motivam
o jardineiro a ficar fora.

revirar a terra
é como revirar os olhos.

verter o sexo
no estupro da papoula,
o áspero que
já não sabe mais chorar.

o sexo revira
a terra do olho áspero
em papoulas
de divertidos aspectos.

motivamos,
estuprados, bílis fiel,
áspero revirar.

que o jardineiro limpe
o ainda motivo.

estupradas armadilhas:
o ainda choro
do jardim motivacional.

os divertidos
revirados fora do sexo,
terra no olho
de papoulas decoradas.



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hiroshima coração

não há maior amor
exceto a guerra.

a vida nas cavernas
é úmida, você está
me matando, você
me faz bem.

 o salitre
todos nós chupamos
diariamente
durante a chuva ácida
no muro.

a loucura
é uma espécie de
inteligência,
algo que só
se pode imaginar
e que de repente
VEMOS
mas quando acaba
não sabemos
mais o que é.

é preciso evitar
pensar sobre as
dificuldades
que o mundo
nos apresenta
algumas vezes.

é preciso às vezes
cair como bomba,
espatifar o corpo
em lados inimigos,
sobrevoar a causa
de tamanho pânico.

somos os amantes
do inimigo da pátria
sem unhas, sem dedos,
três olhos, sem bocas,
cavidades cranianas
expostas ao tiroteio.

nossa história secreta
dirá que não morremos
completamente ainda.

jamais esqueceremos
as cavernas do amor.
jamais esqueceremos
o gosto do impossível.

sinos de sangue badalam
nas migalhas
da nossa deformação.

o amor é inimigo da pátria.
e desde então vivemos
em cavernas.



#




poema azul para paul celan

ao romper do osso,
jaz o equilibrista azulado
com a corda na volta do pescoço.

um pente de areia varre
os ossos velhos rompidos,
entre as unhas sobram
filetes de coisas mortas.

nas papoulas do esquecimento
jaz o homem-tocha, azul.
na peruca das horas
nasce o filho sem olhos.

as sobras do passado
carregamos entre as unhas.

nas cutículas do tempo
carregamos o amor, azulado.

se roemos vorazmente,
osso com osso, unha com dente,
é porque o domador
de leões foi engolido vivo.

o passado desgovernou-se
em presente marinho
e no filete do sangue,
no filho sem horas,
na sobra das unhas,
no tempo dos ossos,

trazemos o amor, azulado.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Poema inédito de Júlia de Carvalho Hansen

Júlia de Carvalho Hansen nasceu em São Paulo, em 1984, e morou e viveu em Lisboa, onde foi fortemente influenciada pela poesia portuguesa.
Tem poemas, leituras, vídeos e entrevistas publicados em blogs e revistas como a Escamandro e a Modo de Usar & Co.
É autora dos livros “Alforria blues ou Poemas do destino do mar”, “Seiva, veneno ou fruto” e “Cantos de estima”.
Abaixo, um poema inédito de Júlia publicado recentemente em sua página pessoal no Facebook.

(Foto: Ilana Lichtenstein)




De madrugada meu pai me enviou um poema 
e sonhou com a minha bisavó que gostava de plantas e o marido criava cavalos 
minha avó morreu nas minhas mãos 
minha avó tinha ouvido absoluto 
minha mãe tem fobia de encontrar um bloco de carnaval no meio da rua 
já meu irmão se incendiou 
e minha sobrinha faz planejamentos de organização dos brinquedos 
hoje é aniversário da minha tia
minha irmã trata muito bem pessoas que não são loucas o bastante 
meu tataravô morreu queimado pelo fogo que ele mesmo ateou e voltou pelas suas costas 
há quem venha de Aruanda
e meu marido vai pras ilhas Maurício 
meus padrinhos mudaram ontem para o Brasil 
meus amigos vão ter uma filha 
dia desses leram meu livro descendo o Amazonas 
meu professor tem se transformado 
muitos dos dias tem me escrito 
as pessoas 
todos os dias me procuram 
 meu amigo terminou seu disco 
meu amigo saiu do grupo 
meu amigo vai lançar seu livro 
meu amigo conseguiu um emprego 
e só os céus sabem como ele é miserável agora 
minha amiga comprou um apartamento e não sabe onde vai viver 
minha amiga vai cantar na Bélgica 
e não sei bem quando a minha amiga volta da Polônia 
minha amiga está novamente apaixonada por ela 
uma menina que conheço deu um basta no ex-machista e eu torço pra que não voltem 
enquanto meu amigo tem feito cerâmicas com fogo pra impedir que o luto avance sobre ele 
em cima da mesa do escritório meu sogro está em Goa, em Angola, nas fotografias 
meu irmão está em Belém 
 minha amiga saiu do retiro e marcou de ler seu mapa 
 vamos nos encontrar pra tomar qualquer tipo de chá 
meu amigo contou que sua filha viu unicórnios entre os emojis usados no seu celular e disse que o ama papai
eu mesma escolho bem as minhas figurinhas 
meu sobrinho está quase adolescente 
meu sobrinho tem uma namorada de nome sabedoria 
minha sobrinha entrou na faculdade 
meu avô comia ovo todas as manhãs como eu que hoje não comi e fiquei mau humorada 
meu avô era pai de santo livre como ninguém 
e eu herdei muita coisa 
mas meu mau humor é algo que não desejo (a quase) ninguém 
neste momento mesmo alguém que conheço deve descer em Santa Apolônia 
e pensar que a vida é tão difícil mas essa luz sem conhaque a nitidez dos dias
ilumina 
não sou ninguém 
sem eles e com eles 
sou alguém a estar neles.